sábado, 6 de fevereiro de 2010

Insônia e a galinha preta

A ausência do bocejo é o desagrado que assola a volúpia e aprisiona a visão à monotonia de um teto branco, hora rachado, hora borrado pela penumbra, hora a única companhia de sua insônia.
O que fazer quando o sono não nos brinda? Entorpecer o corpo? Já não me rendo às pílulas milagrosas ou a simpatias antipáticas. Contudo, confesso que não o faço por experiência.
Faz três anos. Recebi a visita de um senhor chamado César.
César era curandeiro em uma religião africana e por convite de uma de minhas meninas veio até o cabaret.
Quando jovem, desenvolvi o hábito de subverter o meu horário biológico aos caprichos da juventude. Não tento legitimar a minha falta de sono sobre um aspecto do passado, mas seria adorável manter-me acordada pelos mesmos motivos daquela época. Hoje sou impelida por frações multiplicáveis de pensamentos que diluem o sono, de tal forma que não consigo ao menos fechar os olhos sem agredir minha enxaqueca que prontamente revida.
César era um senhor de sessenta e quatro anos, negro, rosto enrugado, cabelos e barbas de uma brancura acinzentada. Magro e estatura mediana. César vinha trazendo uma bolsa presa por uma única alça erguida sobre o ombro.
Havia em um dos quartos do cabaret um ambiente montado por motivo da presença do curandeiro.
Tudo no quarto fora retirado para dar lugar a uma cadeira e uma bacia de alumínio posta a frente da cadeira.
Travesti meu ceticismo para me aventurar em minha descrença.
César me indicou a cadeira, e pediu que eu mergulhasse meus pés na bacia que até então não sabia que continha água. Sem resistência o fiz.
Sentei-me na cadeira e mergulhei meus pés que ficaram encobertos de água até o tornozelo.
César retirou de sua bolsa um saco de aproximadamente um quilo???. Logo descobri que o conteúdo do saco era sal grosso. Com o sal, César fez um círculo em minha volta. “Interessante”, pensei. Sal grosso entre os componentes de um milagre... O que mais esperar desta receita? Uma de minhas meninas, a mesma que convidou César ao cabaret, entrou no quarto. Sob orientação do curandeiro, só poderia permanecer ali ele e eu. Minha menina havia entrado no quarto apenas para trazer uma galinha preta ainda viva. A esta altura comecei a imaginar se tratar de um milagre gastronômico, mas não me manifestei. Mantive a classe.
O homem então se ajoelhou na minha frente segurando a galinha em uma mão e uma faca em outra, em seguida, começou a balbuciar algo que tenho certeza que não se tratava de nenhum dialeto africano dado à semelhança de suas pronuncias com o episódio que eu já havia vivido.
Certa vez, um grupo católico veio ao cabaret rezar por nossas almas a convite de ninguém. O grupo simplesmente se sentiu no direito de fazê-lo. Evitei o conflito e deixei que o fizessem. Em um dado momento da oração, um senhor começou a balbuciar algo incompreensível. Ele enrolava a língua e entoava uma mistura de vogais e consoantes. Garantiram-me que se tratava da língua dos anjos. Uma manifestação divina. Eu não duvidei, mas tenho quase certeza de já ter ouvido por algumas vezes, sobre forte efeito do álcool, alguns freqüentadores do cabaret com a mesma habilidade daquele católico que agora se manifestava neste curandeiro. Será que todos sabem falar o mesmo dialeto africano?
Será que ele também esta falando a língua dos anjos? Por que não? Não duvidaria se ele não tivesse fincado a faca bem no meio da galinha. Imagino que um anjo não faria isso.
Em seguida, o homem contorceu a galinha para que do ferimento saísse mais sangue. Todo aquele sangue era misturado na água da bacia, onde eu estava com os pés.
Nunca fui a favor de rituais que sacrificam animais ou virgens. Sinceramente prefiro vendê-los. Mas como a solidariedade ao benefício do sono me arrematou, não hesitei.
A próxima investida do homem foi retirar de sua bolsa um charuto e duas penas de pavão.
O primeiro trago foi jorrado nas penas, o segundo em meu rosto.
No cabaret soprar fumaça em alguém era um insulto. Ainda que minha vontade fosse expulsá-lo, não o fiz.
Depois de alguns gritos, monólogo de anjo, e outros saltos desengonçados, César interrompeu a cessão dizendo que já era o suficiente que eu dormiria sem grande esforço. Agradeci, paguei-lhe o dízimo que só descobri necessário com a magia já lançada.
Agradeci minha menina que trouxe o curandeiro e com a chegada da noite me aprontei para dormir.
Não que eu duvidasse do potencial do curandeiro, mas achei melhor complementar todo aquele milagre com uma pequena pílula para o sono.
Descobri três novas rachaduras no teto.

3 comentários:

Carmen Eugenio disse...

Realmente, com esse ritual todo, eu não conseguiria dormir...ainda que conseguisse, certamente teria pesadelos com galinhas e línguas enroladas!!! Guerreira você...

Ricardo Novais disse...

Excelente conto! De tão inteligente e irreverente chega a ter uma dose de um delicioso sarcasmo.

Voltou com a corda toda, parabéns minha querida amiga!

beijo pra ti.

Lívia Andrade disse...

Parabéns pelo último post Madame. Adorei a irreverência e o doce sarcasmo.