segunda-feira, 8 de março de 2010

Horóscopo

A previsão é a visão turva do acontecimento.

Não é ao acaso a ocorrência de eventos festivos em meu Cabaret. A atração pelos mangues se dá pela riqueza ali disponível.
Era dia de casa cheia. Muitos políticos, empresários e jornalistas se esbaldavam na companhia de algumas de minhas meninas.
Atendendo às necessidades do editor chefe do Jornal Ernesto Boa Venturo, o senhor Honório Bezerra, separei em um outro andar do Cabaret, uma área para que Honório e sua equipe de jornalistas – que comemoravam o prêmio “O jornal que mais informa” – pudessem desfrutar de maior privacidade.
Certamente os reveladores da verdade omitem-se em uma câmara escura.
Tentando atender de forma cordial a todos os freqüentadores do Cabaret, dediquei uma hora a fanfarra dos jornalistas.
Muito proveitoso! Tanto que me rendeu o que agora conto.
João Medeiros, então jornalista da coluna esotérica do jornal, estava completamente bêbado. A sua voz distorcida dava a impressão de que todas as cordas vocais estavam frouxas. Contudo, as palavras, quando compreendidas, formavam um texto revelador.
Medeiros me confidenciou aos risos como ele escrevia o horóscopo publicado diariamente no jornal.
A princípio, imaginei tratar-se de uma constipação mediúnica que entupia os sentidos de uma revelação astral.
Tudo balela, segundo o próprio Medeiros.
João Medeiros me disse que a única interação astral se dá quando escreve, pois o faz com muitas doses de vodca, o que certamente o deixa alto, talvez mais próximo das estrelas.
Desconfiada, tentei excitá-lo a confidenciar mais detalhes com algumas perguntas.
As respostas são a soma de uma farsa.
Os textos publicados no jornal diariamente são frutos da imaginação do jornalista. Ele simplesmente decide sem nenhum critério como será o dia do capricorniano ou do taurino. Revela fatos respaldados apenas na sua criatividade literária. Como ele mesmo disse, “são muitas pessoas lendo diariamente. Eu escrevo coisas possíveis de ocorrer a qualquer um, em um dia qualquer. Por isso os acertos são tão convincentes”.
Não que eu me interesse por previsões futuras, pois não quero pensar que amarei um estrangeiro e terminarei por ser atropelada por um carro, mas a única certeza que tenho do amanhã, é que ele nasce hoje.

segunda-feira, 1 de março de 2010

O artista

A indústria do rabisco confecciona a arte.
Já estou acostumada a ver cabeças reclinadas sobre o balcão do cabaret.
Uns culpam o vinho, outros a solidão. Há vários motivos que levam um homem às doses que afugentam a sobriedade e os inspiram a um discurso incompreensível, de idéias tortas.
Em uma dessas noites, em que o balcão se expande sob braços, copos e mágoas, reconheci, entre olhares imersos na direção do pensamento, Rogério Siqueira.
Artista plástico baiano, Rogério manteve seus traços voltados ao clássico. Em uma de suas entrevistas em que foi perguntado sobre arte contemporânea, assim respondeu Rogério:
“a arte sempre foi o refúgio dos olhos, arquitetura dos traços que implicam diretamente na visão humana. A obra cumpre seu papel quando atenta contra a soberania do homem. Quando um observador contempla uma obra ele é guiado pela composição orquestrada pelo artista. Este caminho, por sua vez, absorve o observador a uma realidade próxima, pulsante. Ao ver um corpo condenado a eterna inércia do último movimento, o observado consegue projetar toda a extensão do movimento ainda que não executado. Reconhece os elementos que formam o cenário. O observador consegue sentir a pulsação, ele é capaz de jurar que a obra também o observou. Esta é a função da arte. O aparente torna-se real ao ponto da soberania ser confrontada por uma obra de arte. A arte contemporânea deturpou este conceito. Marginalizou a experiência ao culto da efêmera exposição da abstração, quando na verdade a abstração dos traços foi o refúgio da incapacidade artística. A desculpa pela múltipla experiência só deu plenos poderes à soberania do homem. O homem como único observador de uma arte incompreensível que legitima a qualquer discurso uma possível explicação para um borrão de tinta...”
Espantou-me ver Rogério naquela situação. Fiquei inquieta e só sosseguei quando fui falar com ele.
Próxima. Clamei sua atenção com um toque em seu ombro.
Cambaleante, Rogério ergueu o tronco, esfregou os olhos e me dirigiu o olhar.
Rogério não me conhecia, por isso, tratei de me apresentar.
Passados os primeiros cumprimentos. Convidei Rogério para subir comigo para um dos quartos. Não se tratava da oferta do sexo. O convite só tinha como interesse a conversa.
No quarto, não engasguei a dúvida. Minhas primeiras palavras buscaram saber o porquê de um homem - mais que um homem - um artista como ele se entorpecia com a bebida de forma deteriorante.
Rogério sorriu e me disse que bebia para confrontar com um “eu alcoólico”.
Quis logo saber em que isso o ajudaria.
Ele me garantiu que a bebida exorcizava seus sentidos da moralidade que os aprisionavam, com isso, suas idéias eram recicladas e ordenadas para desaparecerem a cada gole. Mas isso não era garantia de extinção das idéias, apenas, a sublimação da idéia.
Então perguntei sobre as idéias que com o sutil gesto do ilusionista desaparecem mais não deixam de existir, voltam todas ao final da mágica.
Em sua confissão não faltaram algumas lágrimas:
“Eu bebo pelo cadáver que não produz mais história. Pelo corpo velado. Pela arte sepultada. Fecharam mais uma galeria de arte por falência. Mais um artista morto, mais um homem ocioso na conformidade das idéias prontas. E o que sobra para as gerações futuras? Recortes do passado. Os resumos são os únicos objetos de estudo que os jovens de hoje estão habilitados a empreender. A memória picotada é o esquecimento do contexto, o congestionamento do aprendizado fracionado que resulta na morte da experiência necessária para expressar a vida. Hoje enterro a minha condição de artista é a enterro bem ao lado de seu progenitor, a arte.”
Posso garantir. As lágrimas que Rogério derramou definitivamente não eram de dor ou culpa, mas sim de pena do que esta juventude se tornou.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Insônia e a galinha preta

A ausência do bocejo é o desagrado que assola a volúpia e aprisiona a visão à monotonia de um teto branco, hora rachado, hora borrado pela penumbra, hora a única companhia de sua insônia.
O que fazer quando o sono não nos brinda? Entorpecer o corpo? Já não me rendo às pílulas milagrosas ou a simpatias antipáticas. Contudo, confesso que não o faço por experiência.
Faz três anos. Recebi a visita de um senhor chamado César.
César era curandeiro em uma religião africana e por convite de uma de minhas meninas veio até o cabaret.
Quando jovem, desenvolvi o hábito de subverter o meu horário biológico aos caprichos da juventude. Não tento legitimar a minha falta de sono sobre um aspecto do passado, mas seria adorável manter-me acordada pelos mesmos motivos daquela época. Hoje sou impelida por frações multiplicáveis de pensamentos que diluem o sono, de tal forma que não consigo ao menos fechar os olhos sem agredir minha enxaqueca que prontamente revida.
César era um senhor de sessenta e quatro anos, negro, rosto enrugado, cabelos e barbas de uma brancura acinzentada. Magro e estatura mediana. César vinha trazendo uma bolsa presa por uma única alça erguida sobre o ombro.
Havia em um dos quartos do cabaret um ambiente montado por motivo da presença do curandeiro.
Tudo no quarto fora retirado para dar lugar a uma cadeira e uma bacia de alumínio posta a frente da cadeira.
Travesti meu ceticismo para me aventurar em minha descrença.
César me indicou a cadeira, e pediu que eu mergulhasse meus pés na bacia que até então não sabia que continha água. Sem resistência o fiz.
Sentei-me na cadeira e mergulhei meus pés que ficaram encobertos de água até o tornozelo.
César retirou de sua bolsa um saco de aproximadamente um quilo???. Logo descobri que o conteúdo do saco era sal grosso. Com o sal, César fez um círculo em minha volta. “Interessante”, pensei. Sal grosso entre os componentes de um milagre... O que mais esperar desta receita? Uma de minhas meninas, a mesma que convidou César ao cabaret, entrou no quarto. Sob orientação do curandeiro, só poderia permanecer ali ele e eu. Minha menina havia entrado no quarto apenas para trazer uma galinha preta ainda viva. A esta altura comecei a imaginar se tratar de um milagre gastronômico, mas não me manifestei. Mantive a classe.
O homem então se ajoelhou na minha frente segurando a galinha em uma mão e uma faca em outra, em seguida, começou a balbuciar algo que tenho certeza que não se tratava de nenhum dialeto africano dado à semelhança de suas pronuncias com o episódio que eu já havia vivido.
Certa vez, um grupo católico veio ao cabaret rezar por nossas almas a convite de ninguém. O grupo simplesmente se sentiu no direito de fazê-lo. Evitei o conflito e deixei que o fizessem. Em um dado momento da oração, um senhor começou a balbuciar algo incompreensível. Ele enrolava a língua e entoava uma mistura de vogais e consoantes. Garantiram-me que se tratava da língua dos anjos. Uma manifestação divina. Eu não duvidei, mas tenho quase certeza de já ter ouvido por algumas vezes, sobre forte efeito do álcool, alguns freqüentadores do cabaret com a mesma habilidade daquele católico que agora se manifestava neste curandeiro. Será que todos sabem falar o mesmo dialeto africano?
Será que ele também esta falando a língua dos anjos? Por que não? Não duvidaria se ele não tivesse fincado a faca bem no meio da galinha. Imagino que um anjo não faria isso.
Em seguida, o homem contorceu a galinha para que do ferimento saísse mais sangue. Todo aquele sangue era misturado na água da bacia, onde eu estava com os pés.
Nunca fui a favor de rituais que sacrificam animais ou virgens. Sinceramente prefiro vendê-los. Mas como a solidariedade ao benefício do sono me arrematou, não hesitei.
A próxima investida do homem foi retirar de sua bolsa um charuto e duas penas de pavão.
O primeiro trago foi jorrado nas penas, o segundo em meu rosto.
No cabaret soprar fumaça em alguém era um insulto. Ainda que minha vontade fosse expulsá-lo, não o fiz.
Depois de alguns gritos, monólogo de anjo, e outros saltos desengonçados, César interrompeu a cessão dizendo que já era o suficiente que eu dormiria sem grande esforço. Agradeci, paguei-lhe o dízimo que só descobri necessário com a magia já lançada.
Agradeci minha menina que trouxe o curandeiro e com a chegada da noite me aprontei para dormir.
Não que eu duvidasse do potencial do curandeiro, mas achei melhor complementar todo aquele milagre com uma pequena pílula para o sono.
Descobri três novas rachaduras no teto.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O escritor

De suas ruínas, o suntuoso vocábulo ressoa a leveza do vento quando toca as rabiolas suspensas ao ar.


Como abandonar uma história sem deixar parte de si ao gozo do esquecimento. Não poderia escurecer o dia afim de não refletir seu rosto em minha mente. Apenas, com a neblina, deixar a visão turva e o coração perdido.
Mas estaria traindo a melhor parte de mim.
Marco Villena, o escritor boliviano mais belo que conheci. Seus escorridos cabelos negros, seus olhos repuxados, sua boca, seu pecado.
Marco não era falador. Contido em suas poucas palavras, era sempre belo ouvi-lo. Vê-lo.
É constrangedor imaginar que tal ser humano não era replicado em número suficiente para ser distribuído aos corações ausentes de um homem como o meu escritor.
Não o resumo à beleza que lhe era perfeitamente esculpida pela vaidade que com o molde de seu corpo jurou atingir a perfeição, mas sim às suas idéias que revolucionam vidas.
Certa vez, enquanto embebedávamos para por fim cedermos à carne, Marco me confidenciou o que, na visão dele, era ser escritor.
“Eu não sou um artista. Artista são filhos da vaidade, reféns de sua própria arte. Escritores não são artistas. Aqueles que dizem o contrário provavelmente não desfrutam da verdadeira vocação de se procriar histórias.
Então quem somos nós, os escritores? Nós somos o próprio deus em todo o seu poderio.”
Marco morreu de câncer aos vinte e três anos sem nunca ter publicado nenhum dos seus doze manuscritos. Como último desejo, ele pediu a sua esposa porto riquenha, de quem agora não me recordo o nome, que queimasse toda a sua obra.
Como amante, não tive nenhum poder sobre os textos que arderam em chamas, mas segundo o seu autor: a minha mortalidade demarca o fim da minha obra. Ainda que ela viva imortalmente, eu para sempre serei uma breve expressão daquilo que está contido ali.