domingo, 20 de dezembro de 2009

As letras

As letras deslizantes comportam todo o significado de sua expressão.
Posso ouvir a marcha da chuva em minha janela. O sol acinzentado não brilha o seu calor escaldante nesta tarde. Posso até garantir que o sopro das nuvens tocou meu corpo e por um instante o arrepiou.
Estranho é ter que recorrer à luz para enxergar, em se tratando que não passa das três da tarde. Mais estranho que isso é o motivo que me leva à luz.
A pouco, uma de minhas meninas me trouxe as correspondências. Entre cobranças e anúncios, havia uma carta escrita a próprio punho de minha distante amiga jornalista, Sandra Paganotto.
Conheci Sandra quando ela veio cobrir a abertura de uma filial do meu Cabaret em Niterói na década de sessenta. Muito educada, logo que esvoaçaram suas perguntas pelo ar, percebi que seríamos amigas.
Na carta, Sandra Paganotto mostrou-se aflita, ainda que na minha leitura. Segundo o que compreendi, ela havia sido demitida do jornal Atlântico Norte.
O Atlântico Norte pertence à família Buarque Gomes, mais precisamente dos herdeiros do brigadeiro Antônio Buarque Gomes.
Sandra, em seu confessionário de letras, detalha a sua indignação mediante ao que ela descreve como parcialidade convicta.
Ainda segundo a carta, não bastou ceder aos prazeres do ofício que a mantinha por algumas horas a mais na redação para redimir-se da coragem que a tornou ingrata.
No dia quinze, último, escorria pelas frestas o cheiro da esbórnia na então festa solene do prefeito da capital. Sandra cobria a licença maternidade de uma amiga e por isso foi escalada para fazer a cobertura do evento. Sem muitas pretensões, pegou seu caderno de anotações, uma câmera fotográfica e partiu em busca de uma mísera notícia que não fosse descartável, como todo o resto.
Porém, para a surpresa de minha amiga, em um dado momento ela flagrou o então prefeito inalando um pó branco que ele mesmo enfileirou na palma da própria mão.
Sandra confidencia em sua carta que o impulso a levou absorver o fato como uma catalisadora da notícia.
Sandra Paganotto foi demitida no dia seguinte da foto não publicada.
Para os Buarque, o jornal não seria um campo de ofensas ao interesse político do próprio jornal que apoiara a candidatura do prefeito e o fariam nas eleições seguintes.
Não preciso mais descrever o conteúdo da carta para entendermos o que ela quis dizer com parcialidade convicta.
Um veículo tendencioso é como a unilateralidade da informação, como se fosse possível existir uma verdade soberana.
Compactuar com tal veredicto é corromper a apuração, é infeccionar o senso crítico com a doença da verdade absoluta.
Por isso, nunca leio um único jornal, por não saber a que verdade aquela notícia se prostituiu, por certo que existem diversas verdades sobre um mesmo assunto e diversas formas de contá-la. E também não descarto o direito de fazê-lo. Mas degolo a verdade que antecede a notícia por ela ser uma mentira, não há imparcialidade em seres orgânicos.

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